quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O mito de Eco e Narciso

Eco e Narciso
 Eco era uma linda ninfa que amava os bosques e as montanhas. Era a favorita de Diana (Deméter), ajudando-a nas caçadas. Mas Eco tinha um defeito: gostava muito de falar, e fosse uma conversa ou um debate, tinha sempre a última palavra.

Certa vez, Juno (Hera) estava procurando o marido, e tinha razões para suspeitar que ele estivesse se divertindo com as ninfas. Eco, com sua conversa, conseguiu deter a deusa por algum tempo, até que as ninfas pudessem escapar. Quando Juno descobriu o que se dera, sentenciou Eco com as seguintes palavras: “Confiscarei o uso de tua língua, essa com a qual me entretiveste, exceto para um único propósito de que tanto gostas: o de responder. Terás ainda a última palavra, mas não terás o poder de iniciar uma conversa.”.

Essa ninfa viu Narciso, um belíssimo rapaz que caçava sobre as montanhas. Apaixonou-se por ele e seguiu seus passos. Oh, como ela desejou abordá-lo com os ditos mais suaves para conquistar-lhe a atenção! Mas estava impotente para fazê-lo. Esperou com impaciência até que ele falasse primeiro, e já tinha sua resposta pronta. Certo dia, o jovem, estando separado de seus companheiros, gritou alto: “Há alguém aqui?” Eco respondeu: “Aqui!”. Narciso olhou ao redor, mas não vendo viva alma, bradou: “Vem!” Eco respondeu: “Vem!”. Como ninguém veio, Narciso chamou novamente: “Por que me evitas?” e Eco lançou a mesma pergunta. “Vamos nos juntar”, disse o jovem. A donzela respondeu com todo o seu coração, usando as mesmas palavras, e correu ao encontro de Narciso, pronta para abraça-lo. “Tira tuas mãos de mim! Eu preferiria morrer a ser teu”, disse ele, recuando. Depois disso, ela foi esconder sua vergonha no retiro do bosque. Daquele tempo em diante viveu nas cavernas e nas encostas das montanhas. Seu corpo definhou em virtude da tristeza, até que afinal as suas carnes desapareceram. Seus ossos tornaram-se pedras e nada restou de si, exceto a voz. E é assim que ela continua pronta para responder a qualquer pessoa que a chame, mantendo o seu velho hábito de ter sempre a última palavra.

"Narciso", de Caravaggio

A crueldade de Narciso nesse caso não foi um ato isolado. Ele rejeitou todas as demais ninfas, tal como havia feito com a pobre Eco. Um dia, uma donzela que tinha em vão procurado atrai-lo proferiu uma prece em que pedia que alguma vez Narciso sentisse o que é amar sem ser correspondido. A deusa da vingança, Nêmesis, ouviu a prece e consentiu que o pedido se realizasse.

Releitura de Caravaggio, by Vik Muniz

 Havia uma fonte cristalina, da qual jorrava água prateada, para a qual os pastores jamais levavam seus rebanhos, nem os cabritos montanheses frequentavam, nem qualquer outro animal da floresta; a relva crescia renovada ao redor, e as rochas abrigavam-na da luz solar. Para aquele lugar veio Narciso certa vez, cansado da caça, sentindo grande calor e sede. Inclinou-se para beber, e viu sua própria imagem na água. Pensou que se tratasse de algum lindo espírito das águas que residia na fonte. Fixou o seu olhar naqueles olhos brilhantes, naqueles cabelos cacheados como os de Baco ou Apolo, o rosto bem formado, o pescoço de marfim, os lábios abertos, e o viço da saúde e os sinais da prática dos esportes em toda parte. Apaixonou-se por aquela imagem, que era a imagem de si mesmo. Aproximou seus lábios dos lábios da imagem, mergulhou seus braços para envolver o seu amado. Contudo, a imagem se desfez com o toque, voltando a se formar depois de um momento, renovando o estado de fascinação do rapaz. Narciso ficou totalmente fora de si; não mais pensou em alimento ou repouso enquanto se debruçava sobre a fonte, olhando fixamente para a própria imagem. E assim falava ao suposto espírito: “Por que me rejeitas, ser maravilhoso? Certamente minha face não te causa repugnância. As ninfas me amam, e tudo mesmo não pareces estar indiferente a meu respeito. Quando estendo meus braços fazes o mesmo, e sorris quanto sorrio para ti.” Suas lágrimas caíram na água e distorceram a imagem. Quando via que o reflexo ia desaparecendo, exclamava: “Fica, eu te imploro! Deixa-me ao menos manter os meus olhos sobre ti, se não posso tocar-te!”. Com frases como essa e com muitas outras alimentou a chama que o consumiu, e aos poucos ele perdeu a sua cor, seu vigor, e a beleza que anteriormente encantara a ninfa Eco. Esta, todavia, manteve-se próxima a Narciso, e quando ele exclamava “Ai de mim! Ai de mim!”, ela respondia com as mesmas palavras. Narciso definhou e morreu, e quando a sua sombra passou pelo rio Estige, rumo ao Hades, debruçou-se sobre o barco para ver a sua imagem refletida no espelho das águas uma última vez. As ninfas choraram por Narciso, especialmente as ninfas das águas, e quando batiam em seu peito, Eco também batia no seu. Elas prepararam uma pira funerária e teriam cremado o corpo de Narciso, mas este não pôde ser encontrado. Em seu lugar, foi encontrada uma flor, púrpura por dentro, rodeada de folhas brancas, que recebeu o nome e preserva a memória de Narciso.



Referência Bibliográfica:
Bulfinch, Thomas, 1796-1867 - “Bufinch’s Mythology”: texto integral, tradução Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2006.

2 comentários:

  1. eu conheci, pela prof diane, um livro sobre narcisismo, mas adentrava mais nos aspectos daqueles pacientes tímidos, cheios de vergonha... é em francês, foi bem legal porque pude treinar a leitura... é "honte culpabilité et traumatisme" do Albert Cicone.
    Eu fiz até um mini texto para um cartaz na semana acadêmica, se quiser depois eu te passo.
    O assunto é muito interessante, entender essa vergonha que adentra em algumas pessoas como uma ferida narcísica.
    Porque o narcisismo diz primeiro sobre o momento que os pais investem o bebê de libido, para que depois -no narcisismo secundário- ele mesmo se invista de libido...
    Tem grande relação com o estádio do espelho de Lacan, quando a mãe aponta pro espelho e diz pro bebê "ah, que bebê lindo, aquele é você, carinhoso, inteligente, etc". E a gente passa a vida inteira tentando corresponder à imagem do espelho, escondendo os defeitos e muitas vezes não percebendo as próprias falhas e podendo até dizer que a falha está no outro.
    Enfim, mega resumindo, algumas pessoas não conseguem se "sentir" como essa imagem do espelho, como se elas fossem sempre piores, e são dominados por até mesmo uma vergonha de existir, o que traz aquele sentimento de insuficiência. Não sei se é nesse ou outro trabalho que o autor descreve aquelas pessoas que não conversam olhando pros olhos do outro, mas sempre pra baixo...
    Ahh é um assunto muito legal! E albert diferencia vergonha de culpa.. e o engraçado é que antes de ler sobre isso eu não entendia porque vergonha e culpa poderiam ser confudidos.. é uma leitura muito rica :D
    Beijos

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    1. Caramba! Belo texto racional, gostei demais! Leitura frutífera! (Marcos Vitelli, Soure, Marajó, Pará)

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