Rafel Sanzi, "A Academia de Platão", Museu do Vaticano |
Quando estudamos o nascimento da Filosofia na
Grécia, vimos que os primeiros filósofos – os pré-socráticos - dedicavam-se a
um conjunto de indagações principais: Por que e como as coisas existem? O que é
o mundo? Qual a origem da Natureza e quais as causas de sua transformação?
Essas indagações colocava no centro a pergunta: o que é o Ser?
A palavra ser em português traduz a palavra
latina esse e a expressão grega ta onta.
A palavra latina esse é o infinitivo de um verbo, o verbo ser. A palavra grega ta onta quer dizer: as coisas
existentes, os entes, os seres. No singular, ta onta se diz to on, que
é traduzida por: o ser. Os primeiros filósofos ocupavam-se com a origem e a
ordem do mundo, o Kosmos, e a
filosofia nascente era uma cosmologia.
Pouco a pouco, passou-se a indagar o que era o próprio Kosmos, qual era o fundo eterno e imutável que permanecia sob a
multiplicidade e transformação das coisas. Qual era e o que era o ser
subjacente a todos os seres. Com isto, a filosofia nascente tornou-se ontologia, isto é, conhecimento ou
saber sobre o ser. (Ao ler isso me pergunto: então a Psicologia seria uma ontologia, já que propõe um entendimento sobre o ser humano, sobre o sujeito do conhecimento?? Fica a questão...)
Por esse mesmo motivo, considera-se que os
primeiros filósofos não tinham uma preocupação principal como o conhecimento
enquanto conhecimento, isto é, não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser,
mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer, pois a verdade, sendo aletheia, isto é, presença e
manifestação das coisas para os nossos sentidos e para o nosso pensamento,
significa que o Ser está manifesto e presente para nós, e, portanto, nós o
podemos conhecer.
Todavia, a opinião de que os primeiros
filósofos não se preocupavam com a nossa capacidade e possibilidade de
conhecimento não é exata. Para tanto, basta levarmos em conta o fato de afirmarem
que a realidade (o Ser, a Natureza) é racional e que a podemos conhecer porque
também somos racionais; a nossa razão é parte da racionalidade do mundo, dela
participando.
Alguns dos primeiros filósofos preocupavam-se
com a questão do conhecimento, como Heráclito
de Éfeso, Parmênides de Eléia e Demócrito de Abdera. Vamos resumir
brevemente algumas de suas ideias principais.
Heráclito no detalhe do afresco de Rafael, "A Academia de Platão" |
Pouco se sabe sobre a vida de Heráclito. É
consenso que nasceu em Éfeso e pertencia à família real dessa cidade. Sua obra
constitui-se de uma série de frases isoladas que foram consideradas durante
muito tempo fragmentos de um texto original.
Heráclito considerava a Natureza (o mundo, a
realidade) como um “fluxo perpétuo”, o escoamento contínuo dos seres em mudança
perpétua. Dizia: “Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as
águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos.” Comparava o mundo à
chama de uma vela que queima sem cessar, transformando a cera em fogo, o fogo
em fumaça e a fumaça em ar. O dia se torna noite, o verão se torna outono, o
novo fica velho, o quente esfria, o úmido seca e tudo se transforma no seu
contrário. (esta ideia me fez lembrar do conceito de devir que discutmos na aula de História da Filosofia!!)
A realidade, para Heráclito, é a harmonia dos
contrários, que não cessam de se transformar uns nos outros. Se tudo não cessa
de se transformar perenemente, como explicar que nossa percepção nos ofereça as
coisas como se fossem estáveis, duradouras e permanentes? Com essa pergunta o
filósofo indicava a diferença entre o conhecimento que nossos sentidos nos
oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcança, pois nossos sentidos
nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como
mudança contínua.
Parmênides na "Academia" |
Parmênides colocava-se na posição oposta à de
Heráclito. Dizia que só podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre
idêntico a si mesmo, isto é, que o pensamento não pode pensar sobre coisas que
são e não são, que ora são de um modo e
ora são de outro, que são contrárias a si mesmas e contraditórias.
Como pensar o que é e não é ao mesmo tempo?
Como pensar o instável? Como pensar o que se torna oposto e contrário a si
mesmo? Não é possível, dizia Parmênides. Pensar é dizer o que um ser é em sua
identidade profunda e permanente. Com isso, afirmava o mesmo que Heráclito –
perceber e pensar são diferentes –, mas o dizia no sentido oposto ao de
Heráclito, isto é, percebemos mudanças impensáveis e devemos pensar identidades
imutáveis.
Demócrito desenvolveu uma teoria sobre o Ser ou
sobre a Natureza conhecida pelo nome de atomismo: a realidade é constituída por
átomos. A palavra átomo tem origem
grega e significa: o que não pode ser contado ou dividido, isto é, a menor
partícula indivisível de todas as coisas. Os seres surgem por composição dos
átomos, transformam-se por novos arranjos dos átomos e morrem por separação
destes.
Através dos nossos órgãos dos sentidos,
percebemos o quente e o frio, o doce e o amargo, o seco e o úmido, o grande e o
pequeno, o duro e o mole, sabores, odores, texturas e assim por diante,
sentimos prazer e dor, porque percebemos os efeitos das combinações dos átomos
que, em si mesmos, não possuem tais qualidades.
"Heráclito e Demócrito", Rubens |
Somente o pensamento pode conhecer os átomos,
que são invisíveis para a nossa percepção sensorial. Dessa maneira, Demócrito
concordava com Heráclito e Parmênides em que há uma diferença entre o que
conhecemos através de nossa percepção e o que conhecemos pelo pensamento;
porém, diversamente dos outros dois filósofos, não considerava a percepção
ilusória, mas apenas um efeito da realidade sobre nós. O conhecimento sensorial
ou sensível é tão verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro alcança,
embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do que
aquela alcançada pelo puro pensamento.
Esses três exemplos nos mostram que, desde os
seus começos, a Filosofia preocupou-se com o problema do conhecimento, pois
sempre esteve voltada para a questão do verdadeiro. Desde o início, os
filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece seguir certas leis ou
regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e pensar.
Pensamos a partir do que percebemos ou pensamos negando o que percebemos? O
pensamento continua, nega ou corrige a percepção? O modo como os seres nos
aparecem é o modo como os seres realmente são?
A Filosofia, desde então, vem se preocupando
com essas questões, que na Grécia levaram a duas atitudes filosóficas
distintas, a dos sofistas e a de Sócrates, quando os problemas do conhecimento
tornaram-se centrais. Mas isso já é assunto para outro capítulo da nossa
“saga”!
Para uma reflexão final, algumas frases atribuídas a Demócrito de Abdera:
"Na realidade, não conhecemos nada, pois a verdade está no íntimo."
"A amizade de um único ser humano inteligente é melhor do que a amizade de todos os insensatos."
"O caráter de um homem faz o seu destino.
Referências Bibliográficas:
CHAUÍ, Marilena. "Convite à Filosofia". Rio de Janeiro. Editora Ática. 1997.
OS PRÉ-SOCRÁTICOS: fragmentos, doxografia e comentários/ seleção de textos e supervisão do Prof. JOSÉ CAVALCANTE DE SOUZA; dados biográficos de REMEMBERTO FRANCISCO KUHNEN; traduções de José Cavalcante de Souza...(et al). 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores)
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